Excerto c.1

Carolina Costa

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A morte quase parecia pura quando semeada no branco da neve. 
— Parece ainda estar morno. — O Comandante murmurou para o vento gélido que lhe trouxe o odor do sangue pútrido ao nariz. O cheiro da morte parecia que lhe dançava à volta numa balada lenta e sensual, provocante, como se o pretendesse aliciar para a felicidade do seu triunfo. — Deve ter acontecido poucos minutos antes dos novatos começarem a patrulha.
Um murmúrio inquieto passou de boca em boca por todos os homens reunidos em volta do cadáver.
— Mas como pode ser possível esta… esta coisa ter chegado tão longe da Fronteira? Os nossos soldados estão distribuídos por todo o cumprimento das montanhas. Não há um mísero centímetro sequer que não seja vigiado do nascer ao pôr do sol! Alguém nos postos de vigia teria dado o sinal! — Por baixo da pesada cota de malha e incontáveis camadas de couro e peles de urso pardo, o velho Askild ainda assim tremeu por outra razão que não o cruel frio das Lâminas de Osar. Apertou o punho da espada com força e procurou pela razão dos seus pesadelos entre as centenárias árvores que os cercavam. Pelo menos um deles já estava morto, os pedaços aos seus pés.
Todos os homens presentes na floresta sentiram um arrepio de medo nos ossos. Só havia o conceito de errado naquele instante, um medo profundo, enraizado em todos eles. Nunca antes haviam se visto perante tal situação. Nunca antes tinha o sistema falhado de forma tão grave. 
Isto pois, sem qualquer sinal vindo dos postos de vigia, os Soldados de Emahir nunca teriam se apercebido da presença de uma daquelas criaturas no Reino. E as consequências dessa falha poderiam ter sido impensáveis se não fosse por um par de noviços terem encontrado o corpo já sem vida, demasiado perto da população de Khel Burim.
Algumas horas já se tinham passado desde o ocorrido. Mesmo assim, os jovens soldados em questão, Hérik Morrass, o único filho do Lorde da região e o seu primo, Arvir Rok de Melbur, ainda tremiam como folhas ao vento. Um dos homens mais velhos notou que os rapazes ainda tinham as mãos enluvadas a apertar com força desnecessária as trombetas que usaram para chamar qualquer guarda experiente que estivesse por perto. Este cavalgou sem descanso até ao posto de vigia mais próximo, clamando que a situação em questão necessitava de ser vista pelos mais corajosos e experientes Soldados.
Portanto, Hérik e Arvir escondiam-se sem vergonha atrás do círculo mais antigo de Soldados de Emahir, todos eles homens experientes e com mais de duas décadas de caça àqueles seres impuros. Todos eles já haviam visto do pior do Outro Reino. 
O Comandante somente grunhiu uma resposta vazia antes de se agachar na neve para percorrer uma mão enluvada pelo gelo. Ainda a noite reinava e a lua cheia iluminava o branco permanente, fazendo assim com que todos conseguissem ver com nitidez o tom preto do sangue que agora untava o couro desgastado. 
Nenhum homem de linhagem pura sangrava de outra cor que não a prata. Mas os restos mortais espalhados pela neve pertenciam a outro ser, algo que nunca deveria ter chegado tão perto da população, que dormia serena a meros metros de distância.
— Que Osar nos acuda. — Ao lado de Askild, Garth retirou uma das luvas e levou o indicador e dedo médio aos lábios, soprou, e levou-os ao coração, batendo duas vezes pelos antepassados, suplicando pela sua eterna vigia sob os mortais do norte.  
À sua volta, os restantes homens repetiram o gesto. Menos o Comandante, ainda 
agachado na neve, observando os pedaços do cadáver com curiosidade. Tarben permaneceu assim por minutos, ignorando os apelos dos restantes para voltar para a Fortaleza antes do sol pálido estar em pleno esplendor no céu. Em algumas horas chegaria a madrugada e todos os indícios daquele infortúnio encontro não poderiam existir. 
Percorreu com o olhar todo aquele cenário de horrores, desde o sangue escuro que tingia a neve para as entranhas por ali espalhadas como se tivessem sido atiradas da mesma forma que marinheiros atiram cordas ao mar. À direita, estavam estendidos os longos membros cinzentos e, ainda mais à frente, observou compridos cabelos pretos pastosos, orelhas pontiagudas e um rosto que outrora poderia ter sido belamente cruel. A criatura olhava para o céu com olhos leitosos e putrefatos como se, mesmo em morte, conseguisse olhar para o seu miserável criador e o ninho nefasto de onde rastejou.
— Temos de queimar o corpo e esconder os vestígios o quanto antes. — Erik era o membro mais velho da companhia e os seus olhos meio cegos já antes tinham visto muito do melhor e pior que o planeta tinha a oferecer. E, no arrepio que percorreu os seus antigos ossos e no sabor fétido do vento que engolia, ele soube que aquela criatura era dos piores demónios que alguma vez andou em terra. 
— É melhor irmos procurar alguma madeira seca e acender uma fogueira. — Garth, com as mãos de novo enluvadas, olhou ao redor com cautela, escutando o som do vento cortante e da dança das folhas como se conseguisse escutar os antepassados a atender às suas preces. — Comandante? 
O homem em questão suspirou pesadamente aquele ar sufocante antes de se elevar sob os restos mortais e, comprovando com um último olhar minucioso que nada mais havia ali para si, deu as costas e soltou as rédeas do cavalo preto do tronco cortado onde estavam antes amarradas, impulsionando-se sob a sela com um único movimento fluido. 
— Acendam uma fogueira e queimem tudo antes de regressar. 
Galopou o mais rápido que o seu cavalo conseguiu por entre o chão imerso pelo manto fundo de neve, sabendo que os homens iriam seguir as suas ordens antes de todos se juntarem ao final da manhã no posto principal. Portanto, sem qualquer desvio, seguiu caminho em direção à Fortaleza da Ravina, formulando o melhor discurso que poderia ponderar, as melhores palavras a se usar para expressar ao irmão aquilo que os seus piores pensamentos mal conseguiam acreditar. 
Os sinais estavam cada vez mais aparentes a todo o redor e só o mais cego dos mortais não o via. Pela rápida paisagem fantasmagórica de pálido gelo, as árvores tinham um tom adoentado e as folhas que sempre resistiram por séculos ás piores das tempestades agora caiam numa avalanche de vida desperdiçada e decadente, em tons de cinza como fumo ou o mais negro do carvão. As cores de doença e de morte.
Apertou mais as rédeas e rezou aos antigos que olhassem para os filhos da terra, pois até no mais oculto dos ossos e na rápida corrente do seu sangue gelado, Tarben sentiu com pavor a mudança lhe chegar à porta. E desejou mais do que nunca que Osar poupasse a sua família do que quer que esteja a olhar dos confins do universo.
Suspirou quando avistou os portões da Fortaleza da Ravina. Os guardas posicionados na entrada não perderam tempo em lhe dar acesso assim que virem de quem se tratava. No entanto, o seu cansado metamorfoseou-se em algo mais. Encolerizado, Tarben mandou todos irem á merda quando lhe trouxeram a notícia  de que o seu tão austero irmão não o poderia receber a tal hora da madrugada, demasiado ocupado a dormir para curar a ressaca, enrolado nos lençóis com duas prostitutas vindas de Hordon. 
Um soldado decente iria acatar as ordens de um superior, mas o assunto que o fez quase matar o seu pobre cavalo para chegar até ali o mais rápido possível, obviamente, não poderia esperar o Senhor de Osar acordar para vomitar o vinho da noite anterior num balde de latão ou que terminasse o serviço com as moças
Então, ali estava o Comandante dos Soldados de Emahir, de braços cruzados em frente à colossal cama entalhada de madeira preta, aguardando com paciência que Yngvar rolasse pelas peles de lobo. Um olhar seu bastou para enxotar as rameiras do quarto enquanto que o irmão mais velho terminava o deplorável ato de se cobrir com uma simples túnica de linho e cambalear até á mesa atolada de armas que nunca seriam usadas, não hesitando em pegar mais um copo de vinho para começar o dia.  
— Penso que mandei o rapaz te dizer que estava ocupado para receber visitas. — Nenhum “bom dia” ou “está tudo bem”.  Aquela era a relação de dois rapazes cuja infância foi regada de rivalidade e, agora enquanto homens, a paz mútua equilibrava-se num único e frágil fio de dever e necessidade. 
— E eu penso ter dito que o assunto que me trás aqui é de suma importância. — Ainda de braços cruzados, parou em frente à mesa, olhando de cima para Yngvar e vendo nada mais do que desapontamento. O Senhor de Osar mexeu a mão como se para afastar um inseto e Tarben soube que era a sua autorização para prosseguir. — Dois noviços encontraram um corpo totalmente desmembrado, de uma criatura com sangue negro. Isso enquanto patrulhavam a povoação em redor de Khel Burim. Ninguém deu pela criatura. 
Se ainda possuía algum resquício de paciência, todo ele foi-se pela janela quando a única resposta de Yngvar perante tais alarmantes notícias foi um mero encolher de ombros e mais um gole de vinho. Nenhuma inquisição perante o que, de fato, era a tal criatura, nem uma ordem para enviar ainda mais soldados para partilhar a Fronteira. 
Com nenhum apreço pela hierarquia naquele instante, em um movimento demasiado rápido para o seu entorpecido irmão se defender, Tarben atirou o cálice meio cheio para a lareira acesa a seu lado, ouvindo o assobiar das chamas alimentadas pelo álcool, puxando ainda mais o tom de fogo do seu cabelo e fazendo-o parecer uma chama viva. 
Puxou pela camisa de linho até os olhos de Yngvar não terem outra alternativa senão olhar os seus e ouvir.
— Caso ainda não tenhas percebido, o teu território está à beira da ruína. Cada vez mais encontramos criaturas do Outro Reino a esgueirar-se pelas nossas patrulhas, algumas delas chegando perto das povoações, como se sucedeu esta manhã e, só por puro acaso ou sorte, algo chegou a elas antes de nós, dando-lhes um fim antes que pudessem se encontrar com o povo. Além disso, os trabalhadores das montanhas relatam que os abundantes cristais das grutas são cada vez menos, quase como se estivessem a se desfazer em neve. E ainda os camponeses falam de vegetação morta, gado doente e cada vez menos comida e recursos. E eu pergunto-me que merda estás tu, ó Senhor das Lâminas de Osar, a pensar fazer para solucionar estes problemas!
Dando-se conta de que tinha acabado de denegrir um superior, afrouxou o seu aperto no tecido e deixou com que o irmão caísse sobre o encosto da cadeira ornamentada após se acalmar. No entanto, quase puxou da sua espada quando Yngvar mandou o copeiro lhe trazer mais um copo cheio. E então estendeu-lhe uma carta com o selo já partido.
— Há alguns meses recebi uma carta do Vale Branco, do próprio Qhor. Após semanas de relutância, demasiada política e reparações, trocamos relatórios e, ao que parece, também no Vale a situação está cada vez pior. E, no caso deles, tão mais isolados que nós dos campos, a fome já se fez sentir em algumas das suas povoações. O Qhor Dhumatir enviou uma carta ao Rei a pedir uma audiência urgente para discutir estes eventos mas não obteve qualquer resposta até à data. Portanto, ele fez-me uma proposta vantajosa.   
— Uma proposta? 
— Sim. Ele propõe que deixemos quaisquer desavenças que as nossas famílias tenham tido em tempos passados perante esta peculiar situação. Fala sobre um Norte únido já que, pelos vistos, o Rei não possui qualquer interesse neste mar de gelo para além das patrulhas que fazemos na Fronteira e nas jóias que extraímos das montanhas e enviamos para a capital. Ele propõe então unir os Qhovese e os Osar com o casamento do seu herdeiro, o Ye’Qhor Asger Qhovese, com a jovem Senhora de Osar, Yrsa. 
Tarben ficou sem palavras perante aquela notícia, tanto foi o choque.  
— Casamento? E arranjas para marido da tua única filha o herdeiro do nosso maior rival de décadas? É essa a tua brilhante ideia para acabar com todos estes problemas? Por Osar, ela ainda tem quatorze anos!
— Muitas mulheres casam ainda mais jovens, ela já está mais do que na altura de se casar e não vejo porque recusar esta proposta. 
O comandante precisou de uns minutos para se recompor,  de desacordo com todas as decisões do irmão. Não era segredo para ninguém que o Lorde Yngvar Osar era um terrível soberano, tomando atenção somente às suas próprias necessidades e, até ao presente momento, o seu herdeiro, Ulrik, não lhe parecia mais promissor. Mas era esse o destino de filhos varões, no poder sobre todos os outros que tiveram a infelicidade de nascer em segundo.
— E para quando é que estão a planear este casamento?
— Iremos realizar o casamento o mais depressa possível. Já dei ordens para a comitiva se preparar para partir para o Vale Branco. O dote também está a ser arranjado e a Savala vai tratar dos assuntos da casa e tudo o resto no que consta à noiva. — Bebeu o copo todo de uma vez, como se aquele breve discurso tivesse esgotado todas as suas forças. — É tudo, Comandante?
— Não, não é tudo. Ainda nos resta discutir o que fazer em relação às criaturas que continuam a entrar no nosso território.
— Continua a fazer o que fazes melhor, Tarben. A matar coisas.
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